JOÃO MODÉ | INVISÍVEIS

10ª edição - 23 de maio a 26 de julho de 2009













































João Modé | texto da exposição

INVISÍVEIS

O Projeto Respiração chega a sua 10ª edição com João Modé, cuja intervenção reafirma os fundamentos desta iniciativa. A ideia do Projeto Respiração surgiu do modelo da tribo de Levi, a única, entre as tribos de Israel, a quem era interditado o direito de posse do território. Como sua função era eminentemente espiritual – de conservar os fundamentos do povo judeu – não se poderia correr o risco da territorialização. A tribo se constituía com base na ideia de um descolamento do território geográfico e assim poder instaurar e preservar o território religioso e cultural, que não deveria se enraizar para não se desviar de seu objetivo. A arte, assim como todos os outros movimentos espirituais e cognitivos do homem, constitui-se a partir de um desprendimento do dado imediatamente material. Saber conservar essa dimensão é a sabedoria capaz de guiar nossas percepções e sensações do mundo, sem se misturar com ele.
O que se pretende com o Projeto Respiração, seguindo a sabedoria da tribo de Levi, é oferecer ao artista um território ocupado pela história da arte e pela história pessoal da colecionadora, a partir do qual ele poderá exercitar a sua liberdade de produzir descolamentos de sentido poético e visual da forte presença material que o circunda. João Modé nos oferece obras que trabalham no limite entre os mundos da presença material e imaterial que emana dos objetos da coleção; entre o tempo do objeto musealizado e o tempo em que esses objetos eram parte da vida cotidiana da casa.
Sua primeira atitude foi escolher um dos espaços da casa para habitar. Sentiu necessidade de conviver na Fundação não só como museu, mas também como casa. Desejou aproximar-se do tempo quando a casa era moradia. Escolheu ocupar um dos sótãos que está fora do circuito de visitação e integrá-lo ao circuito, criando um espaço de suspensão onde o visitante poderá conviver com um tempo menos acelerado e de contemplação. Nesse lugar, João Modé se permitiu conviver com a ambiência da casa para se deixar levar pelo seu imaginário e descobrir novas paisagens físicas e mentais. Trouxe de volta os sons, os discos que ela escutava; os aromas, seu perfume predileto (Joy de Jean Patou) e sua flor predileta (antúrio). Experimentou o que é viver na penumbra, já que Eva Klabin trocava o dia pela noite. Enfatizou a presença de objetos duplos – que percebeu se repetirem na coleção –, criando um jogo de espelhamento entre eles, para nos lembrar, através da ideia da imagem refletida, a presença imaterial da matéria.
A intervenção Invisíveis é uma ação sutil e solicita uma atenção cuidadosa do público para distinguir o limite entre dois mundos: o dos objetos tais como ordenados pela colecionadora e os objetos submetidos à ação do artista, que buscou deslocá-los do registro da apreciação para o registro das sensações. Ao reativar espaços, vivências e sensações que estão fora do olhar do visitante, João desmusealizou a casa, trazendo de volta o tempo, paralisado por Eva Klabin ao transformar sua residência em museu.
Interessa a João Modé provocar, através de sua ação, as pulsões invisíveis que escoam por entre as obras de arte e os objetos da coleção, reativando as lembranças que secretamente os envolvem e fazê-las aflorar no imaginário dos visitantes, para que eles também se sintam mobilizados afetivamente pelo espaço e pelo tempo da casa-museu. Sua proposta se insere com pertinência e exatidão à proposta curatorial que visa a artistas sensíveis à percepção de que a casa-museu de Eva Klabin, antes de ser museu, foi um território habitado; um território cheio de recordações, memórias, vivências, que criam um pano de fundo para as obras de arte. A circularidade de sentido entre a fisicalidade das obras e suas emanações sensíveis – como resultado impalpável e imaterial das relações estabelecidas por Eva Klabin – constitui o campo de proposição estética do trabalho de João Modé e do Projeto Respiração.

Marcio Doctors
Curador

João Modé | clipping


Veja Recomenda - 24/06/2009

JOSÉ BECHARA | SAUDADE

9ª edição - 15 de novembro de 2008 a 01 de fevereiro de 2009












José Bechara | texto da exposição

SAUDADE

Quando pensei em Bechara para a 9ª edição do Projeto Respiração foi por causa do seu projeto A casa, que teve início em 2002, a partir de uma proposta em Faxinal do Céu, município de Pinhão (PR), com curadoria de Agnaldo Farias e Fernando Bini. Esse projeto, que ficou conhecido como Faxinal das Artes, propunha reunir uma centena de artistas durante duas semanas para ocupar uma vila residencial que havia sido planejada para a construção da usina Copel, que, em vez de ser destruída quando da finalização da obra, foi transformada em abrigo criativo para projetos educativos e artísticos.
José Bechara foi convidado como pintor e saiu da experiência como escultor. Para aquém dessa generalização retórica, o fato é que, por uma série de circunstâncias, Bechara não conseguiu pintar, mas transformou a casa que estava ocupando em um manifesto plástico em que os móveis da casa foram expelidos pelas janelas e portas. Através deste ato de revolta formal e sígnica, o artista conseguiu expandir e requalificar o sentido de sua obra.
Ao contrário do que se poderia imaginar de imediato há uma forte relação entre suas “pinturas” feitas a partir de lonas de caminhão, peles de animais ou processos de oxidação, e o projeto A casa. Quem nos fornece a chave para decifrar esse enigma é o próprio artista em entrevista a Gloria Ferreira, no livro publicado pela editora Dardo sobre sua obra: “Essa experiência tem a ver com a origem da minha pintura – a lona de caminhão usada, a transformação do aço, o seu processo de oxidação: desviar uma determinada matéria de seu destino”.
“Desviar uma determinada matéria de seu destino” é a operação formal e conceitual que Bechara propõe quando lonas de caminhão abandonam a função a qual estavam destinadas e passam a operar no registro da arte como passagem de tempo; ou quando a casa, feita para acolher, se revolta contra seu destino e expele para fora o mobiliário, subvertendo a relação continente/conteúdo. Isso é possível porque Bechara recupera a irredutibilidade da matéria como forma: a lona de caminhão é tela; as manchas, abstrações informais; os móveis, estruturas geométricas. Ao operar a matéria como pura forma, ele atribui para ela caráter sígnico, capaz de provocar novas dobras de sentido. Só que esse desvio é mais propriamente um desvio em direção a si mesmo, no sentido de reduzir o objeto ao seu aspecto formal, e transformá-lo, assim, em matéria-prima para a arte: a cadeira é feita para sentar, mas, quando o artista exorbita a sua função, ela passa a ser capaz de indicar, por meio de uma operação conceitual e física de expulsão, a idéia de tensão e não de conforto, que lhe é própria,
Da mesma forma, a proposta do Projeto Respiração é buscar desvios a partir de uma situação de casa-museu de colecionador. É como se não bastasse o sentido expositivo instaurado por sua instituidora e fosse necessário desviá-lo do destino proposto por Eva Klabin para aproximá-lo do sentido original de que um museu é uma estrutura que necessita sempre ter seu sentido atualizado. E, assim como todos aqueles que têm participado do Projeto Respiração, José Bechara também adicionou mais uma camada de sentido para a coleção.
Para além da associação imediata entre uma casa-museu e o projeto A casa, o que me levou a convidar Bechara para participar do Projeto Respiração foi que a lógica implícita na sua ação artística – tal como a descrevemos – comporta desdobramentos capazes de aceitar o desafio de trabalhar com uma casa, uma coleção e uma personagem, sem ter de repetir a dinâmica da contenção/explosão/expulsão, que, por motivos óbvios, seria impossível de ser aceita em um museu.
A intervenção proposta por José Bechara é resultado de uma conversa em que comentei que tinha a sensação de que Eva Klabin não havia morrido, mas que um belo dia decidiu ir embora, bateu a porta e deixou a casa tal como estava. Bechara, então, imaginou que a casa sentia saudade de sua antiga proprietária. Paredes, portais, escadas e armários embutidos se multiplicariam e preencheriam o vazio deixado por ela. Mais uma vez aqui a lógica foi a de desviar a matéria de seu destino. O que era uno é agora múltiplo. O que era objeto é agora sujeito.
A casa se replica porque sente saudade e quer preencher a falta que a saudade cria. Dessa forma, Bechara desconstrói o espaço, cria outro: metafórico e metafísico, como resultado da sua percepção de que quando Eva Klabin transformou sua casa em museu – ao musealizar sua existência –, criou um terceiro ente, para além da coleção e de sua residência, capaz de nos oferecer múltiplas percepções a respeito da vida, como o Alef de Borges. O gesto de Eva Klabin comporta uma visão lapidada que permite inúmeros reflexos de desdobramentos da realidade.
Através de Saudade, é como se todos os espaços da casa ficassem prenhes de sentido. Tudo passa a reverberar, e a casa adquire autonomia. A imaginação se sobrepõe à realidade. Os objetos adquirem vida. Como um corpo vivo a casa se desdobra buscando preencher o vazio que a ausência de Eva klabin criou. José Bechara desfaz o limite entre objetividade e subjetividade ao criar uma terceira via capaz de animar os objetos inanimados. Objetos capazes de sentir e que redefinem nossa percepção do espaço originalmente instaurado por Eva Klabin. O artista cria uma ficção barroca em que o mundo fala. Os objetos são ecos de si mesmos. O resultado, uma estética do excesso. A ferramenta de trabalho, o conceito. A execução, a redução da forma à sua condição radical de matéria. O método, o desvio.
Ele também cria um entrelaçamento, ou melhor, um campo de pulsões onde podemos localizar, ao lado da arte do passado, as manifestações contemporâneas, como a arte conceitual (o conceito preside a intencionalidade dessa interferência e legitima a idéia de desvio), a minimal art (a redução da forma à sua condição radical de matéria é a base sobre a qual se assenta a sua imaginação) e uma atalização do barroco, que é o curso subterrâneo que alimenta a imaginação de José Bechara e que direciona sua obra ao encontro de uma pureza que se esconde no excesso.

Marcio Doctors
Curador

José Bechara | clipping


O Globo - Rio Show - 21/11/2008

NUNO RAMOS | PERGUNTE AO

8ª edição - 04 de abril a 08 de junho de 2008







































Nuno Ramos | texto da exposição

NUDEZ E MUDEZ

O encontro da obra de Nuno Ramos com a coleção e com a casa de Eva Klabin produziu uma tensão visual positiva e ousada na trajetória do Projeto Respiração. Há no artista uma paixão avassaladora pela arte, e esse sentimento se manifesta de forma paradoxal. Explico: seu desejo de preservar o território da arte é tanto que seu impulso foi o de conservar a coleção longe do olhar “intruso” do público. Seu desejo foi devolvê-la a si mesma; aprisioná-la ainda mais no “círculo mágico” (1) que a colecionadora criou para abrigá-la.
Como um colecionador, que ao comprar uma obra de arte a retira de circulação do mercado, captando a visão da obra para si, Nuno propõe retirar as obras do alcance da visão do visitante para preservar algo de precioso que elas encerram – a força do sentido do espírito que organiza a matéria –, e devolvê-lo para elas mesmas. Seu desejo é o de fazer prevalecer a obra de arte e a arte acima do artista, do crítico, da instituição, do mercado, do curador e do público. Para ele o importante é o triunfo da arte.
A maneira como Nuno Ramos realiza essa operação é radical e destemida. Parte de uma consciência da irredutibilidade dos materiais com que lida e destaca a sua ação como a de um aglutinador desses materiais, graças às suas diferenças e não apesar delas. Nesse processo o que permanece ou o que é entregue à visibilidade é a potência da ação de juntar o que aparentemente não estava destinado a estar junto.
Esse processo fica mais evidente e é mais facilmente percebido em suas pinturas monumentais, nas quais o que garante a possibilidade de juntar materiais que não se misturam – espelho, vidro, tecido, madeira, óleo, metal, plástico, tinta, vaselina e outros – é uma ação externa e estranha a eles. É a própria ação do artista que deixa de ser um elemento que desaparece ao longo do processo criativo para ser uma força a se manifestar e a se presentificar no resultado da obra. Em outras palavras, não é a plasticidade inerente aos materiais que desencadeia uma poética (Nuno não é um esteticista; não faz aflorar a poética dos materiais), mas é a ação/imaginação do artista, ao reunir o não-reunível, que explicita uma apreensão estética do mundo denotadora da própria tensão do mundo em que vivemos e o paradoxo que subjaz a tudo. Em Nuno, essa atitude não é um capricho gratuito, mas o próprio sentido que costura a sua obra. Alberto Tassinari surpreende esse processo ao dizer que: “As obras de Nuno Ramos surgem pelo modo ostensivo de unir instâncias, elementos e materiais muito pouco unificáveis. As diferenças saltam à vista, mas também as nervuras a reuni-las. De uma união de impossíveis, fica à mostra o fazer que as aglutina”.(2)
Esse “fazer que as aglutina”, enunciado pela fina sensibilidade de Tassinari, é uma sintaxe criativa singular que procura explicitar a estrutura do paradoxo. Na intervenção Pergunte ao, por exemplo, o que se dá a ver é o que esconde a obra, e o que esconde a obra faz com que ela se veja no lugar de ser vista, e a resposta /contacto que esperamos de uma obra visual é transformada numa frase que induz a inquirir indicativamente as coisas do mundo: Pergunte ao, da mesma forma que perguntamos à obra do que ela trata, ao buscar desvendar o seu mistério. A parte “refletiva” do espelho revela a imagem para ela mesma, a parte opaca do espelho nos devolve o mistério da visibilidade na forma imperativa de perguntar. Há nessa inversão, provocada por Nuno, a tentativa de explicitação do processo de consciência das coisas: pergunte a si mesmo no silêncio/cegueira das imagens e receba o sentido como resposta/pergunta.
O processo ostensivo de evidenciar o trânsito secreto que costura o sentido das coisas gera um estremecimento ou um desalinhamento naquilo a que estamos habituados pela tradição. Há uma quebra na linearidade discursiva como se o que está aprisionado no registro da visualidade pudesse falar, ou se aquilo que é refém do que pode ser enunciado pelas palavras pudesse ser visível. Nessa intervenção é como se sua obra se aproximasse de um magma anterior à separação das palavras e das imagens. É como se desejasse reinstaurar o momento anterior, quando tudo era um e deu origem à irredutível separação que a forma impõe ao pensamento e à matéria.
No processo dessa aproximação é evidenciado aquilo que estou querendo explicitar ao enunciar que a força inventiva de Nuno Ramos está em trazer à superfície da manifestação da visibilidade o processo da união do que não se mistura como um fim em si. Interromper o vínculo “natural” entre a obra e o espectador é uma quebra de expectativa que tem por fim tonificar a relação com a arte. Da mesma forma que em certas tradições religiosas e populares, durante o período de luto, espelhos são cobertos com o propósito de afugentar o morto (para que ele não surja entre os vivos, refletido no espelho), Nuno encobre os quadros, as esculturas e os objetos para restituí-los ao seu lugar de origem, que é a arte; e a palavra é introduzida como um deslocamento da imagem capaz de restituir não a visão da arte, mas o seu sentido, da mesma forma que ao impedir que o morto seja refletido no espelho, lembramo-nos do lugar da vida na morte e da delicada relação entre a vida e a morte.
Na série Permito, granitos negros fazem alusão direta a lápides, criando analogia entre a idéia de casa-museu de colecionador e o tempo, que, encravado, no passado se perpetua no presente. Uma vida que permanece para além da morte; ou uma vida para a qual a morte não é uma interrupção, mas a possibilidade de continuidade entre os vivos, “porque a vida e a morte são uma só coisa” (3). Essa percepção de casa-museu como uma unidade entre o passado, o presente e o futuro, ou como um vaso comunicante entre a vida e a morte, estabelece uma idéia de que a arte é capaz de gerar entrelaçamentos entre as diferentes camadas de tempo. E, de fato, é isso o que ocorre na casa-museu de Eva Klabin e com o Projeto Respiração.
Porém, quando Nuno Ramos faz com que esculturas, móveis e objetos se vejam refletidos na face polida do granito (criando um espelho negro), gravando na face não-polida do granito a série de frases do Permito, ele está aludindo à relação entre o que é permitido e o que é interditado. O granito negro interdita a visão do objeto e permite a sua visão ao refleti-lo na face polida. O que interdita permite; e o que permite interdita. Esse jogo entre o que se dá a ver e o que se esconde, entre o que se materializa ao olhar e o que nunca se materializará à visão, é o processo inerente à construção da obra visual e plástica. No processo de evidenciar a tensão oposta entre interdição e permissão, Nuno mais uma vez revela o antagonismo como uma instância instauradora da arte.
Seguindo por essa linha de raciocínio, gostaria de destacar o que mais me chama a atenção nesta 8ª edição do Projeto Respiração: a palavra – o verbo. A palavra permeia todas as obras idealizadas para este espaço e constitui o fulcro desta exposição, ou seja, a irredutibilidade entre as palavras e as imagens que o artista procura juntar da mesma forma que procura unir materiais que aparentemente não são para ser unidos, como já demonstramos.
A presença da palavra é uma constante na trajetória de Nuno Ramos, mas, para além do fato de ser excelente escritor, a palavra tem uma função instauradora na constituição de sua obra visual e é esse o aspecto que me interessa. Nuno é uma mistura de Beckett e Goeldi. Há, como neles, uma solidão, um abandono e uma perplexidade que se juntam a uma percepção aguda de seu próprio tempo, difícil de ser enunciada, mas fácil de ser percebida ou sentida quando diante de suas obras. É uma presença da verdade do processo criativo que se cola à obra durante sua feitura e que é percebido como sensação indizível quando a obra é vivenciada. A palavra funciona como um clarão (o branco que insidiosamente atravessa a superfície negra de Goeldi) ou como uma sonoridade cujo texto tem a mesma presença e a mesma força pontual, indicativa e silenciosa de uma imagem (Beckett).
A obra de Nuno Ramos atravessa o cenário das artes como um clarão que ilumina o indizível e se enuncia como verdade pela presença da sensação desencadeada pela junção dos materiais. Não é uma poética oca de administração da sedução dos materiais, mas presença avassaladora da matéria agindo no pensamento como se fossem palavras. A tensão positiva nasce dessa dicotomia, que se resolve no seu oposto. Dito de outra maneira, a palavra exerce uma função plástica, e a matéria se configura como enunciado verbal. Essa torção estabelece um território sensível que nos aproxima da verdade como presença com a qual nos identificamos e não necessariamente sabemos como definir. É algo da ordem do sensorial.
Enunciar essa percepção é árduo porque é difícil traduzi-la em palavras e também porque fica implícita a sua impossibilidade. Corro o risco medido de ser mal interpretado levianamente. Mas meu pensamento se constrói ao longo dos meus textos como um exercício de escavação em que tenho de retirar camadas mentais que se intrometem entre mim e a obra e me aproximar da sensação. Assim é o meu processo de escritura e de invenção. É o lugar onde me reconheço. Por isso, na medida em que o texto vai sendo tecido, descubro no seu sentido o sentido da obra. Foi assim também com a obra de Nuno. Quanto mais me envolvia com a mecânica do fazer do meu texto, mais a sua obra se revelava e ia descobrindo coisas, que eu mesmo desconhecia como o porquê do nome deste texto (“Nudez e mudez”) que dei antes de começar a escrever. Foi, por exemplo, através da série das Vitrines, que percebi a razão do título.
Na série das Vitrines, as esculturas e os objetos da casa falam. Nuno cria textos especiais para a escultura de autoria anônima de Santa Teresa de Ávila do barroco austríaco, para o relógio Luís XIV, para as poltronas da Sala Inglesa e para a mesa da Sala de Jantar. Não resisto à tentação de associar esse trabalho à atitude de Miguel Ângelo diante do seu Moisés pronto, ordenando que falasse: “Parla!”. Mas o que parece ter motivado Nuno é o oposto dessa idéia. O artista não quer trazer a obra de arte para dentro do circuito da vida, nem há qualquer proposta mimética na sua intencionalidade. Ao contrário, propõe nos levar para dentro do universo da arte e, mais uma vez neste caso, através de uma interdição: os objetos da casa-museu estão aprisionados dentro de uma redoma falante que reproduz a fala desses objetos. A visibilidade nua é encapsulada pela retórica, e a imagem se faz verbo.
Diferentemente do que uma percepção mais imediatista poderia sugerir, o que Nuno Ramos oferece à visão são objetos despidos de qualquer interferência. Ele não modifica nada neles. Por isso, a nudez. Cria barreiras para o olhar para preservá-los na sua integridade original. A modificação é determinada pela palavra escrita ou falada que solicita do espectador um esforço maior de aproximação para penetrar no universo que o artista intencionalmente quer apartar do olhar do público, mas que lhe é devolvido por um envolvimento mais amplo, desencadeado pela força imagética da palavra. As palavras têm a função de nos colocar em contato direto com as obras de arte da coleção, despidas de qualquer interferência: nuas.
Nuno Ramos é um artista-filósofo. No que filosofia e arte podem ter de melhor. Ele as utiliza como instrumentos que vasculham a realidade e nos devolvem uma percepção que nos aproxima de algo que nos identifica com a verdade de nosso tempo. Não me parece que para ele arte tenha função expressiva, mas função extrativa, isto é, função de operar, através do processo criativo (por isso a importância da mecânica do fazer na sua obra), os diferentes substratos subjacentes ao mundo da aparência das imagens, de forma que a nossa percepção vá ao encontro deles como identificação e não como localização. Em outras palavras, ao juntar, na superfície da percepção, palavras e imagens – da mesma forma que junta sal e breu ou a sua obra com as obras da coleção Eva Klabin –, ele está explicitando que quando lidamos com a irredutibilidade, não podemos equacionar a realidade através da causalidade. Palavras não são nem causa nem efeito das imagens e, tampouco, imagens são efeitos ou causa das palavras. O que nos resta são associações que surpreendem a realidade do mundo no pulo. E surpreender esse momento do salto é do que trata a obra de Nuno Ramos. Não há como explicá-la; resta-nos desvendá-la através da identificação muda: Nudez e mudez.

Marcio Doctors
Curador

1) Walter Benjamin. “Desempacotando minha biblioteca”. Em Iluminations. Glasgow: Fontana/Collins, 1977. p. 60-61. Estão no ensaio não só a expressão como também o conceito de que o colecionador, ao colecionar, retira do mercado a obra de arte para constituir o círculo mágico que captura a obra em uma outra realidade.
2) Alberto Tassinari. “O encantamento do mundo”. Em Nuno Ramos. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1999; São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2000. p. 11.
3) Título de uma obra de Rui Chafes, que realizou a exposição “Nocturno”, durante a sétima edição do Projeto Respiração.

Nuno Ramos | clipping


O Globo - Segundo Caderno - 03 de abril de 2008

RUI CHAFES | NOCTURNO

7ª edição - 26 de outubro a 16 de dezembro de 2007

Suave e indulgente escuridão


A história da minha alma I e II (2004, ferro)



Le mort (1984, bronze)


L’ innomable feuille de… (2004, bronze)



Orgulho ingenuamente cruel (2007, ferro)



O estreito espaço que separa a amabilidade da saciedade (2007, ferro)



Não quando os outros olham (1996, ferro)



Porque a vida e a morte são uma só coisa (2007, ferro)

Rui Chafes | texto da exposição

NOCTURNO

Se predestinação existe, podemos afirmar que Rui Chafes e o Projeto Respiração estavam predestinados um para o outro. Quando pela primeira vez pensei na idéia de introduzir Arte Contemporânea no circuito de Arte Clássica do acervo da Fundação Eva Klabin, Beatriz Luz, artista e amiga de Rui, me apresentou o catálogo da intervenção que Rui Chafes havia realizado no Palácio da Pena em Portugal, que guardava uma forte sintonia com o que eu queria realizar. Em 2005, através de amigos comuns (José Mario Brandão e Paulo Pimenta), Rui inteirou-se melhor a respeito do Projeto Respiração, pegou um avião e veio conhecer-me e à Fundação Eva Klabin.
Rui Chafes chegou numa sexta-feira e no sábado pela manhã trouxe-o aqui. Assim que entrou na casa, ao contrário da maioria das pessoas, ficou encantado com a penumbra. Expliquei que a casa era especialmente preparada para de dia parecer noite porque Eva Klabin vivia à noite e dormia durante o dia. NOCTURNO surge daí. Mas surge, também e principalmente, por uma sincronia de interesses: a obra de Rui Chafes encontra no ambiente noturno da casa de Eva Klabin o espaço ideal para manifestar-se. Rui é um artista que foge na contramão. Ao contrário do momento atual em que vivemos, que se valoriza a luz, o brilho, a claridade, a velocidade e o espetáculo, Rui prefere a escuridão. Para ele a penumbra é um valor de contenção necessária e uma forma de resistência. Suas esculturas são quase sempre negro-opacas. Para Rui Chafes, artista comumente classificado como herdeiro do Romantismo Alemão (ele é um grande tradutor de Novalis para a língua portuguesa), a penumbra é mais do que um valor retórico ou metafórico, é um valor formal constituinte de sua obra. Ela permite um rebaixamento expressivo, fazendo com que trabalhe com economia de meios formais, que o aproxima do Minimalismo.
A combinação dos ideais românticos com os valores formais do Minimalismo faz de Rui Chafes um artista singular capaz de criar obras que são resultado de uma imaginação muito particular. Como em arte me desagradam as classificações, evidenciar a obra de Rui como um paradoxo instaurado pelo Minimalismo, para além do Romantismo, estabelece um campo de percepção da importância de sua proposta: o Romantismo alimentou a Arte Moderna com o seu espírito libertário, com a esperança como forma de negar a realidade imediata e transformá-la para o futuro e com a idéia de arte como expressividade do sujeito; o Classicismo, outro movimento fundamental na constituição na idéia de modernidade em arte, trouxe o rigor formal, a idéia de arte como “coisa mental” e a contenção da objetividade.
Essas duas forças oscilaram ao longo da Arte Moderna, ora pendendo mais para o lado do Romantismo (ex: Expressionismo) ora para o lado do Classicismo (ex: Concretismo). Rui Chafes alia-se no Romantismo ao Romantismo Alemão, mais introspectivo e menos esperançoso, e no Classicismo, ao Minimalismo que quer redimir a forma através da pureza do material. Sua obra dobra essas duas pulsões e estabelece uma densidade ao preservar na superfície do material seu rigor formal e os valores espirituais do sujeito. A obra de Rui consegue conservar através e no Minimalismo o ideal romântico de pureza e, através e no Romantismo, o rigor formal do espírito. Essa junção faz com que suas esculturas constituam uma espécie de lastro que nos preserva da diluição da imagem no mundo contemporâneo e nos aproxima da penumbra da Fundação Eva Klabin como ambiente capaz de absorver esse tipo de reflexão.

Marcio Doctors
Curador

Rui Chafes | clipping


O Globo - 28/10/2007



O Globo -



O Globo - Segundo Caderno - 29/12/2007


ESTADOS DE METÁFORA | BRÍGIDA BALTAR | PASSAGEM SECRETA

6ª edição - 07 de junho a 26 de agosto de 2007










ESTADOS DE METÁFORA | CLAUDIA BAKKER | PRIMAVERA NOTURNA

6ª edição - 07 de junho a 26 de agosto de 2007













site da artista www.claudiabakker.com.br

ESTADOS DE METÁFORA | MARTA JOURDAN | ZONA DE LANÇAMENTO#1

6ª edição - 07 de junho a 26 de agosto de 2007