Flutuações
Quando o lugar se faz tempo e o tempo se faz lugar
Como é
difícil para mim mover no território de Arthur Bispo do Rosário. Sinto-me
violentando sua obra. É difícil para um curador ter de admitir esse fato, já
que o exercício de curadoria é um exercício de parceria. Quando me envolvo com
uma obra, envolvo-me porque acredito que poderei de alguma maneira acrescentar
algo - não para o entendimento (porque entender para mim é pouco, pois não
acredito que haja algo a ser desvelado), mas para cerzir um devir que não
corrompa a potência que motivou a invenção da obra e possa reafirmar, por meio
da minha ação, sua potência. Portanto, em minha opinião, o curador trata de
potências. Potências como pulsões germinadoras, não do que se explica mas do
que faz pulsar, na ordem humana, a existência submetida à ordem do cosmos; puro
devir da invenção potência.
O
"incômodo" que a obra de Bispo do Rosário produz em mim é que me
sinto distorcendo a integridade de sua obra ao fragmentá-la. Sinto-me, de
alguma maneira, cúmplice daquilo que condeno ao trazê-la para o Respiração. Um
dia, foi decidido que melhor seria espalhá-la pelo mundo. Decidiu-se - talvez
como estratégia de sobrevivência, facilidade de apresentação, estudo,
arquivamento, apreensão ou pelo alto custo que implicaria apresentá-la toda
reunida em exposições itinerantes - desfazer a maneira como ele a aglutinou em
sua cela/célula e a maneira como ele conviveu nela e com ela. Graças a esse
fato, ou apesar dele, parafraseando Merleau-Ponty, é que talvez a obra tenha
sido preservada. Mas ela certamente foi preservada também por sua
potência, cuja coerência interna passou a exercer uma espécie de força
gravitacional que, ao adensar-se em sentido, provoca identificação imediata de
reconhecimento e passou a ser fonte de inspiração. Sua obra cria um sistema de
saturação interna que é autorreferente e daí provém sua coerência não de uma
subjetividade mas de uma singularidade que se permite ser um canal de sentido
expressivo através do próprio corpo/vida, que passa a existir em função das
necessidades expressivas da obra.
Sua
cela, assim como uma célula, era uma unidade mínima a partir da qual foi criado
um corpo complexo das diferentes "obras" (chamemos assim
provisoriamente) que inventava. Na realidade, elas não eram e nem são obras
individualizadas, como se pode crer em função de como elas passaram a ser
apresentadas; ela é um todo. É um cosmos, cujo conjunto não é uma reunião, mas
um todo indivisível; por isso célula, ou melhor, mônada. E não tem nenhuma
motivação ou pretensão artística. Somos nós (os outros) que passamos a atribuir
esse valor, já que arte é tudo aquilo que não tem utilidade, mas que tem valor
para o nosso espírito. Ou, citando Cildo Meireles, "a arte é sempre uma
espécie de inutilidade indispensável, decorrente daqueles que estão próximos da
loucura e que têm a força e coragem para transformar o seu entorno".
Ricardo
Aquino conta em texto [...] no dia 5 de janeiro de 1939, [Arthur Bispo do
Rosário], encaminhado de outro hospício, foi recolhido à Colônia Juliano
Moreira onde ficou no pavilhão dos agitados. Lá viveu por um tempo, saiu,
retornou algumas vezes, até que no início dos anos sessenta ele reingressou na
colônia e não saiu até a sua morte, em 5 de julho de 1989: os últimos vinte e
cinco anos de sua vida passaram-se na colônia.
Essa
informação biográfica é fundamental para entendermos que num dado momento de
sua vida ele decidiu que ficaria confinado, tal como fez Yayoi Kusama anos
depois, isolando-se do mundo na sua cela/célula, que era o território de sua
liberdade. Bispo do Rosário decidiu confinar-se, desafiando todos os
procedimentos clínicos de sua época (choques elétricos, lobotomias) porque se
tornou intocável. Fez-se intocável pela coerência da construção de algo que não
compreendiam, mas que desafiava impondo respeito juntamente com sua força
física de ex-marinheiro e ex-lutador de boxe. Modificou seu entorno com a
coragem dos que trazem consigo a certeza de transformarem suas vidas e seu
entorno no que o destino lhes reservou. Sua cela/célula era o território da
liberdade do devir futuro; livre de seu passado, que não era memória da doença,
nem nostalgia, mas investimento na potência da vida. Onde ele era doente pela
medicina, era sadiamente lúcido pela arte. Para Foucault, como nos indica
Ricardo Aquino "a loucura é a ausência da obra" ou, ainda,
"Bispo do Rosário criou pela sua dinâmica de vida e saúde e não pela de
sua doença. Conforme Deleuze (2004) sublinhou, quando o artista cria, ele
clinica a si mesmo e ao mundo, que se enriquece com sua criação".
Acredito
que Tarkovski contribui para esse pensamento quando afirma que a arte é a força
espiritual capaz de ultrapassar a falta de espiritualidade de uma época, e eu
acrescentaria, de um indivíduo também. A arte é capaz de detectar o distúrbio
de uma sociedade ou de uma pessoa, provocada pela falta de espiritualidade, mas
é também a força capaz de fornecer os meios espirituais para superá-los por ser
a potência que nos permite estar plenamente na superfície imanente da densidade
daquilo que permeia o mundo e que nos faz sentir totalmente presentes no
instante dilatado da eternidade. Arte é o encontro com a superfície estendida
que reveste tudo, onde não há dentro ou fora, e que nos faz pulsar em vida ao
sermos dominados pela liberdade da invenção destemida, em que não há nem a parte
nem o todo, mas quando cada fragmento traz consigo a totalidade: densidade
substantiva da presença. Quando somos ausência de nós e presença do mundo
em nós.
Bispo
do Rosário soube, como poucos, penetrar no universo de dissolvência da
subjetividade para deixar que a fala do mundo se expressasse através dele. Ele
percebeu que o lado de fora é mais perto do que supomos e que na realidade em
arte não há um lado de fora e um lado de dentro. O que há é uma contiguidade
contínua em que o indivíduo é a encarnação viva da fala do mundo. Esse é um
estado de poética que poucos se permitem ou conseguem atingir e que muitos
artistas almejam. É muito delicado falar desse assunto sem ser mal-entendido ou
mal interpretado. É um estado de potência poética, em que é possível
experimentar não o sublime, como nos indica Kant, porque não é um estado
adjetivo, mas uma condição radicalmente substantiva: quando o lugar se faz
tempo e o tempo se faz lugar, manifestando a experiência radical da totalidade
do uno.
Foi
essa a razão que me impulsionou a pensar que a obra de Arthur Bispo do Rosário
seria adequada para o universo de Eva Klabin, mas não como havia ocorrido até
então, no âmbito das edições passadas do Respiração. Ele é um artista morto.
Não seria possível realizar uma intervenção especificamente concebida por ele
para a casa museu, mas ao mesmo tempo, a simples menção dessa ideia produzia
uma certeza atraente: criava o encantamento da evidência (a isso chamo de
afirmação substantiva), que se basta por si só, como acontece com tudo que é
coerente, mas, no entanto, a princípio, não há nada mais antagônico do que
colocar lado a lado esses dois universos: o de Eva Klabin e o de Bispo do
Rosário.
Os
dois viveram vidas diametralmente opostas. O que produz então o encantamento
dessa evidência? Mais coisas os separam do que os unem. O que nos faz refletir
que a coerência nem sempre se dá pela aproximação de semelhanças ou pela máxima
banal de que os opostos se atraem. Suas vidas eram muito diferentes. Os dois
viveram na mesma época, atravessaram juntos grande parte do século XX. Eva
Cecília Klabin nasceu em 1903 e faleceu em 1991. Arthur Bispo do Rosário nasceu
em 1909 e faleceu em 1989. Pertenceram à mesma massa de tempo cronológico, mas
cada um teve um universo totalmente diferente do outro. Socialmente,
economicamente, animicamente eram opostos. Os dois colecionavam. Eva reuniu um
dos acervos mais importantes de arte clássica do Brasil e deixou para a cidade
do Rio de Janeiro como reconhecimento e gratidão pelo enriquecimento de sua
família nas terras brasileiras. Bispo do Rosário colecionou a miséria e reuniu
tudo que encontrava ou lhe davam para fazer um inventário das coisas do mundo,
que seria apresentado na hora de sua morte como testemunho de sua passagem pela
terra. Eva reuniu o que havia de precioso na sociedade e Bispo do Rosário
reuniu o que era descartado, sem valor, mas que ele soube transformar em algo
para além do descartável. Ambos tinham preocupação com a permanência além da
morte e de reunir no lugar em que viveram o testemunho de suas existências.
Esse
fato para mim é o fundamental. Ambos entenderam, cada um à sua maneira, a
dimensão espiritual da existência e quiseram transformar o espaço que criaram
para si como materializações de seus tempos: o tempo que se fez espaço através
deles. Quando nos deslocamos no tempo, não chegamos somente a outro espaço,
chegamos à presença de outro tempo. Os espaços são desvios no tempo. Sempre
afirmei que a proposta do Respiração era a de criar desvios no tempo. O primeiro
foi o de Eva Klabin, ao instaurar sua casa como museu. Os demais desvios (as
intervenções dos artistas do Respiração) foram a maneira que encontrei de
propor o deslocamento do tempo engessado por Eva Klabin para a criação de
outros desvios do tempo, que permitissem outras percepções de seu legado de
maneira a perpetuá-lo no tempo.
Arthur
Bispo do Rosário, no entanto, ele próprio, criou o seu desvio no tempo ao
instaurar sua cela/célula. Instaurou um desvio de tempo coeso e fechado em si
mesmo. Não desejo compará-los para que não se tenha uma visão leviana de uma
semelhança que não existia. O que pretendo é demonstrar que ambos criaram um
compromisso com suas existências, que era a tradução de seus desejos de
permanência e transcendência, mas que são irredutíveis entre si. E por isso
mesmo, a única maneira que tinha de juntá-los num mesmo espaço, sem reduzir ou
impor um ao outro, era o de produzir o encontro de dois espíritos; duas
maneiras diferentes de ser no tempo. Permitir que os fragmentos da obra de
Bispo do Rosário entrassem no universo de Eva Klabin, sem tocar nos seus objetos
e na disposição deixada por ela para enfatizar a diferença e configurar o
encontro de dois espíritos tempos dessemelhantes, mas que pertencem a uma
realidade plural, cindida e conflitante de uma mesma realidade histórica.
O fato
dos fragmentos da obra de Bispo do Rosário estarem suspensos - por isso
Flutuações -, revela que a intenção curatorial foi a de fazer que ambos
compartilhassem o mesmo espaço, conservando suas singularidades, ao mesmo tempo
que introduz e enfatiza a obra desse artista no universo da história da arte
pela sua potência avassaladora de insularidade. Ele é uma ilha solitária que
flutua sobre o oceano da história e que se deixa levar pela correnteza profunda
dos caminhos dos mares, que não tem margem, mas tem rumo. Sua obra estabelece sua
própria rota a partir da potência da arte, não se deixando capturar, e conserva
a mesma solidão profunda que a invenção da loucura reservou ao seu destino
pessoal, ao alijá-lo da sociedade. Bispo do Rosário é um sobrevivente e sua
obra é a expressão da insistência de sua sobrevivência como uma estratégia de
salvação pessoal e da humanidade. Ele é o testemunho vivo e atento de seu
tempo: um colecionador que conservou os objetos que seriam apresentados no seu
momento final como redenção da sua vida e da vida de todos. Ele entendeu a
solidão não como o lugar da introspecção arredia, mas, ao contrário, como o
lugar em que o corpo se deixa atravessar pela duração e por isso aberto ao
mundo através dos caminhos da arte como expressão. Ele não fala da sua dor porque
não há autocomiseração. Ele fala de testemunho: de presença viva e atenta da
vida na forma que lhe coube, criando um lugar a partir da percepção de seu
tempo vida, indicando que não há nada mais radical do que a realidade.
Marcio
Doctors